17 fevereiro 2011

Marcas do tempo


asilo_poesia
Não importa qual asilo de idosos, nele sempre haverá homens e mulheres que têm na face e na fala a marca do tempo. Não faço referência apenas às rugas ou à voz cansada, mas também a calos na memória e frases desconexas. Um deles se aproximará e contará uma estória que você não vai entender. O jeito é fingir-se cúmplice de cada palavra balbuciada sofregamente.

Estive num destes locais que abriga personagens da vida que parecem esperar calmamente pela morte. Dá pra se "ver" anos adiante e ter receio do que o tempo fará conosco. Aos 19 anos visitava com frequência os idosos dum outro asilo. Naquela época, talvez por estar mais longe da velhice, tinha um olhar diferente. Via naqueles senhores e senhoras as figuras de meus avós e não a mim em um futuro.

Adélia Prado em "O tempo", escreveu: "(...) além de velha pecava pela rejeição de sua velhice e pecava feio, aumentando-se por conseqüência e castigo em mais velhice e mais feiúra". Não rejeitar a velhice deve ser fundamental para que ela chegue moderadamente. É como se aceitar de forma gradativa. Ver as mudanças no corpo, na disposição física como reflexos do amadurecimento ou uma conseqüência natural às pessoas que acumulam anos à existência.

Assistindo a uma entrevista do grande poeta Manoel de Barros, concedida aos 90 anos, nutri o desejo de alcançar a sua idade com a mesma lucidez, sapiência e espírito jovial que ele mantém. Invejei – no bom sentido – a sua pureza. Como um homem, aos 90 anos, permanece tão lindamente puro? Não há rastro de contaminação de sentimentos, parecem inexistir pecados velados.

Embora nonagenário, Manoel de Barros tem o olhar de uma criança e suas palavras expressam este enxergar diferenciado. Encanto-me com seus poemas cheios de poesia. Ele ensina que "(...) as folhas das árvores servem para nos ensinar a cair sem alardes".

Se eu chegar ao clímax do amadurecimento etário, Deus permita que seja capaz de despertar em quem estiver por perto um encantamento, senão igual, ao menos semelhante. Aí poderei dizer que eu e o tempo caminhamos lado a lado e que suas marcas não me foram letais.

(Fátima Nascimento)

8 comentários:

Kenny Rosa disse...

Muito bom, Fátima. Quem é amigo do tempo compartilha com ele os bons momentos. Muito bem apropriados os nomes citados.
Abraços!
Kenny Rosa

Fátima Nascimento disse...

Kenny, se não podemos contra ele, aliemo-nos a ele (o tempo).

Obrigada pela presença!

Caca disse...

Belo texto, Fátima! Muito belo! A diferença de idade de meu pai para mim é 33 anos. Eu fico olhando-o satisfeito e esperançoso. Minha inveja - também no bom sentido - é alcançar lá os seus 81 anos anos com a mesma jovialidade, lucidez e saúde. As etapas tods de nossa vida, se vivida com sapiência fazem do tempo um mero expectador de nós em vez de algoz. Meu abraço. Paz e bem.

Splanchnizomai abraçando o amanhã. disse...

Meu pai tem 79 anos. As marcas do tempo ainda não lhe pegou. É cheio de alegria.

Fátima Nascimento disse...

Cacá,

Gostei desta leitura que fez. O tempo nos assiste. E esse assistir pode ser no sentido de que nos vê (acompanha) e no sentido de que CUIDA de nós.

Paz!

Fátima Nascimento disse...

Splanchnizomai, como é bom desfrutarmos da alegria e experiência de nossos pais. Bj, manamiga.

Gustavo disse...

Olá Fátima,

estou desconsolado com essa postagem...

abç

Gustavo

Fátima Nascimento disse...

Gustavo, não fique assim: desconsolado. Precisamos pensar no que estamos fazendo em nossas vidas e de nossas vidas enquanto temos a consciência dela e podemos "atuar" em prol de nossa saúde física e mental.

Obrigada pelo comentário!

Meu abraço.

Quando o grito interior sai de casa

Em casa, o direito ao berro devia ser universal. Em regra, portas e janelas alheias espreitam, assombradas. É preciso saber muito de si para...